segunda-feira, 30 de julho de 2007

Escafandro


Uma das coisas que eu gosto em você é essa sua franqueza crua, ou crueza franca. Admiro isso. Como diria um amigo meu, "acho digno". Invejo você. Eu escuto o chorar do mundo num surround stereo da alma, e sinto a minha própria dor de forma lancinante.

Era o Analista de Bagé que prescrevia para a depressão um "chute no traseiro e deixar de ser fresco" ou algo de gênero? Por tragicômico que seja, ele estava certo. Todo deprimido não passa de um gradessíssimo fresco, um Fresco com F maiúsculo, e a consciência de nossa própria frescura é o que há de mais deprimente em nossa condição.

Gostei dos seus dois estados de ânimo, normal e puto. Eu, como boa sociopata frequentadora do DSM-IV, tenho vários, todos extremos e não-interligados, que revezam-se na minha alma como uma horda bárbara reveza-se ao violar uma freira em uma catedral saqueada.

Meus bárbaros internos (que não passam de um bando de Frescos com roupinhas e atitudes estilo Manowar franzindo meu cérebro) são legião, mas estão contidos na fronteira entre a mania e a depressão. A Dra. Kay Redfield Jamison fez um excelente trabalho de mapeamento dessa fronteira em seu livro "An Unquiet Mind: A Memoir of Moods and Madness" (traduzido no Brazil). Here's an appetizer:

"People go mad in idiosyncratic ways. Perhaps it was not surprising that, as a meteorologist's daughter, I found myself, in that glorious illusion of high summer days, gliding, flying, now and again lurching through cloud banks and ethers, past stars, and across fields of ice crystals. Even now, I can see in my mind's rather peculiar eye an extraordinary shattering and shifting of light; inconstant but ravishing colors laid out across miles of circling rings; and the almost imperceptible, somehow surprisingly pallid, moons of this Catherine wheel of a planet. I remember singing Fly Me to the Moon as I swept past those of Saturn, and thinking myself terribly funny. I saw and experienced that which had been only in dreams, or fitful fragments of aspiration. "Was it real? Well, of course not, not in any meaningful sense of the word real. But did it stay with me? Absolutely. Long after my psychosis cleared, and the medications took hold, it became part of what one remembers forever, surrounded by an almost Proustian melancholy. Long since that extended voyage of my mind and soul, Saturn and its icy rings took on a elegiac beauty, and I don't see Saturn's image now without feeling an acute sadness at its being so far away from me, so unobtainable in so many ways. The intensity, glory, and absolute assuredness of my mind's flight made it very difficult for me to believe, once I was better, that the illness was one I should willingly give up. Even though I was a clinician and a scientist, and even though I could read the research literature and see the inevitable, bleak consequences of not taking lithium, I for many years after my initial diagnosis was reluctant to take take my medications as prescribed. Why did it take having to go though more episodes of mania, followed by long suicidal depressions, before I would take lithium in a medically sensible way?"

Esse é o dilema do transtorno bipolar -- ter que escolher entre as maravilhas do estado maníaco (a percepção da realidade elevada a níveis absolutamente lisérgicos) e as profundezas abissais da depressão (que no meu caso só não é suicida porque ainda há livros demais para ler, filmes a assistir e músicas a escutar. A Arte é minha lanterna dos afogados.). É uma escolha de Sofia.

Só os maníacos sabem o que é sentir o aroma de Deus na chuva, evocar os mortos com uma canção, sentir o respirar de todos os que o precederam em sua nuca à noite, ver os contornos dos que ainda estão por vir no escuro. Viver como em um musical da Broadway, caminhar pelas ruas como Barishnikov, pensar em poesia, funcionar em diferentes realidades ao mesmo tempo agora. Olhar-se no espelho e maravilhar-se com cada aspecto do seu corpo, sentir-se perfeito, limpo. Me vem à mente agora aquela música que abria o programa da Xuxa, "Doce Mel" (pode rir -- se eu não estivesse na minha downward spiral eu estaria gargalhando por dentro):


Bom estar com você
Brincar com você
Deixar correr solto
O que a gente quiser
Em qualquer faz de conta
A gente apronta
É bom ser moleque
Enquanto puder
Ser super humano
Boneco de pano
Menino menina
Que sabe o que quer
Se tudo que é livre
É super incrível
Tem cheiro de bala
Capim e chulé
Doce, doce, doce
A vida e um doce
Vida e mel
Que escorre da boca
Feito um doce pedaço de céu

Sorte minha não ser do tipo suicida, ou asim que estivesse ou pouco mais sã e relesse esse post eu tomaria uma overdose de Rivotril.

Então tá então. Se posso ser infeliz o bastante para usar "Doce Mel" para ilustrar a fase maníaca, posso ser mais feliz ao comparar a depressão como todas as bandas de Death-Satanic-Gutural-Kill-Jesus-Rape-The-Virgin-Mary-Metal juntas em um OzzyFest satânico em sua cabeça, berrando no último volume o quanto você é vil, o quanto não vale nada, sua vida não presta, nada jamais irá dar certo, para que tentar, para que tomar banho, por favor me internem, tomem no cu, me deixem em paz -- seguidos por 20 minutos de solos speed metal de uma guitarra mal-afinada perfurando seus tímpanos existenciais.

O mundo torna-se cinza, as pessoas tornam-se cinza, sua boca tem sabor de cinza. É como se a vida fosse um belíssimo aquário de peixes tropicais dado a uma pessoa de péssimo gosto; você é o enfeitinho cafona -- um homenzinho patético preso dentro de um escafandro embaçado, soltando bolhas pela cabeça, entre uma arca do tesouro igualmente patética e um adesivo de "favor não bater no vidro" -- colocados ali pelo imbecil que jamais mereceu um aquário daqueles pra início de conversa. Ridículo. Isolado. Consciente da vida ao seu redor, mas incapaz de interagir com ela.

Cônscia de que meu tempo aqui é limitado, de que estou na melhor fase, biologicamente falando, da vida; sabendo que tenho tudo e mais um pouco para fazer o que quiser, sem esforço. Inteligência. Beleza. Carisma. Todos os atributos de um personagem de AD & D turbinados (modéstia entre eles) -- e nada. Uma Fresca. Daí vem a vergonha de ser tão ridícula. E com a vergonha, o ódio por estar fazendo isso comigo mesma. A coisa piora. Álcool? Viro Conga, a Mulher-Macaca. Cannabis? Engorda, e pior que ser deprimida só mesmo ser deprimida e gorda. Comida? Idem. Other imagination enhancers? VERY expensive short-term reliefs. Bala na cabeça? Muito splattergore. Zumbizo. Não sou nada, apenas estou em algum lugar. Nada me toca. Nada me comove. Nada me surpreende, além do fato do meu marido permanecer do meu lado durante tudo isso. Sempre.

Voltamos à escolha. Is it better to burn out or to fade away, Highlander? Acho que você me conhece bem o bastante pra saber minha resposta.

Pode fazer piada. Eu nunca me levei a sério mesmo. Fico por aqui com duas citações pertinentes:

"Our greatest blessings come to us by way of madness, provided the madness is given us by divine gift."
- Socrates

e

"I doubt sometimes whether a quiet & unagitated life would have suited me -- yet I sometimes long for it."
--Byron


So it goes.

--Xochiquetzal.

Um comentário:

uma pessoa aleatória disse...
Este comentário foi removido pelo autor.