Sacanagem. Awwww.
Você ficou com saudades de mim. Os leitores não-tão-imaginários assim devem ter ficado com saudades de mim também.
Awwww.
Nunca consigo deixar de me surpreender com os efeitos de minha ausência na vida das pessoas -- não por falta de auto-estima, mas sim pela consciência da minha condição de fraude humana e criatura de existência quase que puramente conceitual. Sou no papel, e não no viver; meu
status de "café-com-leite" no pique-pega da vida me dá vantagens, como a de resolver parar de jogar quando bem entender, e desvantagens, como a de jamais ser levada a sério. Acostumei-me a estar à margem do rio do mundo, uma sapa maníaca, anfíbia social. Quando minha ausência se faz sentir e eu percebo que não sou tão efêmera assim eu me comovo.
Awwww.
Mas ó, terça-parte de minh'alma e não-tão-imaginários-assim leitores: eu prometo que dessa vez eu voltei por um bom tempo. Melhor ainda (já que a minha palavra vale menos do que areia no deserto): uma série de comprimidinhos rosa-claros promete que dessa vez eu ancorei minha fragata, acompanhada por um grupo de comprimidinhos brancos que brada ao povo que fico. Se algum dia vocês despertarem sem o calor de meu corpo calipígio ao seu lado, com um pedaço de papel de pão com um smiley, um beijo de batom borrado e um "FUI!" no ímã da geladeira, culpem a Pfizer, a Libbs e a Roche. E não se desesperem, que como qualquer gata no cio eu
sempre volto. Coberta de parasitas mentais e prenhe de idéias insólitas, mas volto.
*esfrega-se nas pernas dos leitores*
*ronrona obscenamente ao ser afagada pelo companheiro de blog*
*vira a barriguinha pra cima*
Depois desse mea culpa felino, resta-me descrever algumas paisagens noturnas e cenários oníricos que observei durante meu desterro. Algumas o Atillah já conhece via MSN, outras não; espero que os leitores apreciem esse mosaico de impressões distorcidas que descortinarei diante deles.
EXHIBIT ONE:
MICHAEL STIPE GARY JULES & THE RAINBOW CHICKS
Meio-dia de quarta-feira, sol escaldante, quatro quilos de livros na bolsa, saio do trabalho a caminho do restaurante vegetariano. A rua é das mais movimentadas da cidade, carros, fumaça, berros, ambulantes se apinhando nas calçadas exíguas onde duas pessoas não conseguem andar ombro a ombro. Confusão de ônibus, caminhões, monóxido de carbono, poeira de uma cidade assolada pela seca. Bailo pela calçada abrindo caminho entre idosos a 10m/h, grupos de crianças arrastando mochilas de rodinha e adolescentes bloqueando a passagem conversando em grupinhos. Suo. Uma mochila de rodinha do Homem-Aranha bate contra a minha canela e seguro o impulso de mandar o moleque que a impulsiona para a puta que o pariu (o que não seria muito longe, que que a senhora em questão saltitava sorridente ao lado do pimpolho, impedindo minha ultrapassagem). Fome.
A pressão baixa, paro em um pé-sujo chamado BAR SPARTA para tomar uma água e manter a calma. Todos os bebuns do bar olham pra mim. Um velho de olhos baços e cabelos bege colados ao crânio pelo sebo de dias sem banho senta-se no banquinho ao meu lado, confere minha bunda e me pede um cigarro. Quando digo que não fumo, me olha com ódio e diz:
"Você vai morrer amanhã, você vai ver."
Finjo que não escuto, pago pela água, coloco meu mp3 player num volume quase ultra-sônico para abafar o ruído do trânsito ao meu redor e
Michael Stipe Gary Jules começa a cantar sua versão de "Mad World" do Tears for Fears, cortesia da trilha sonora de
Donnie Darko:
All around me are familiar faces
Worn out places, worn out faces
Rising early for their daily races
Going nowhere, going nowhere
Their tears are filling up their glasses
No expression, no expression
Hide my head I want to drown my sorrow
No tomorrow, no tomorrow
And I find it kind of funny
I find it kind of sad
The dreams in which I'm dying
Are the best I've ever had
I find it hard to tell you
I find it hard to take
When people run in circles
It's a very, very
Mad World
Mad world
Children waiting for the day they feel good
Happy Birthday, Happy Birthday
And I feel the way that every child should
Sit and listen, sit and listen
Went to school and I was very nervous
No one knew me, no one knew me
Hello teacher tell me what's my lesson
Look right through me, look right through me
And I find it kind of funny
I find it kind of sad
The dreams in which I'm dying
Are the best I've ever had
I find it hard to tell you
I find it hard to take
When people run in circles
It's a very, very
Mad World
Mad World
Enlarging your world BANG! A mola mestra da minha sanidade vai pra casa do caralho. A música narra o leprosário que me cerca, a voz beatífica de
Stipe Jules toca cada corda das minhas emoções represadas. Sigo em frente chorando atrás dos óculos escuros, até ver a alguns metros de distância um grande grupo de crianças reunido ao redor de alguma coisa, bloqueando a calçada estreita como um coágulo entupindo uma artéria. Tiro os fones de ouvido e ouço piados desesperados, dezenas, incontáveis piados entre os risos esganiçados das crianças que se aglomeram com uma curiosidade macabra, os olhos gulosos mirando o chão. Chego perto e vejo quatro caixas baixas de papelão na calçada, e dentro delas um caleidoscópio de pintinhos tingidos de vermelho, roxo, verde, azul, laranja. Os pintinhos desesperados sobem uns por cima dos outros, na tentativa de se refugiarem em algum canto da caixa, fora do alcance das garras das crianças e das mãos horrendas do vendedor, que os segura com a delicadeza de um
boxeur.
Congelo. Desvio o olhar para a rua em frente na tentativa de ignorar o fervilhar colorido dos bichinhos atormentados pela sede, pelo calor e pelas crianças medonhas -- só para me deparar com duas ou três manchas coloridas prensadas no asfalto, memorial da fuga heróica -- por malfadada -- de pintinhos desesperados.
"
Why did the chicken cross the road?", penso e sorrio do horror de penas e carne no asfalto. Quero sair dali. Desesperadamente. Quero apertar o PAUSE do mundo e não consigo. Ao me desviar do coágulo de crianças vejo um cachorro de rua de um cinza sujo, sarnento porém gordo,deitado de lado contra o muro. Cachorros me acalmam. Li uma vez sobre a beleza do céu refletido nas pupilas de um cão, e desde então sempre busco a paz desse céu nos olhos dos cães que saúdo pela rua. Agacho-me para afagar o cão, que balança o rabo sem muito entusiasmo e sem se levantar. Então eu vejo.
Entre as pernas traseiras do cão, fazendo as vezes de seus testículos, jaz um saco de pele distendida do tamnaho de uma manga tommy. Um tumor enorme, cheio de veias. O bicho não consegue se levantar.
END TRANSMISSION. E assim termina meu primeiro relato das paisagens imperfeitas de minha mente. Dependendo da reação do público, conto as que se seguiram, prevenindo-os que o fator estranheza só tende a aumentar.
Gostei da sua expressão "descaralhados de surpresa". "Descaralhado' é uma palavra muito expressiva, e expressou bem o nível de surpresa que quase me aniquila diariamente com as novidades incessantes da internet, juntamente com a apatia e indiferença da grande maioria dos beneficiados,
who take it all for granted.
Como pode? A pergunta permanece.
Como podem as pessoas permanecerem grudadas em frente a TV aberta, discutindo quem matou quem e assistindo novela? Como pode? Como pode essa aceitação passiva das notícias regurgitadas pelos canais de TV, o estado de sítio cultural em que esse povo alienado está?
Há uma comunidade do Orkut que se chama "O Pior Cego é o qe Vê TV". Não tenho uma TV em casa há uns dez anos. Recuso-me a assistir a qualquer coisa em canal aberto, e ultimamente até as poucoas oportunidades que tenho de assistir a TV por assinatura me irritam. Nesse fim de semana fui obrigada a assistir DUAS HORAS de programação de domingo enquanto fazia hora para pegar meu ônibus de volta pra casa -- duas horas de Tom Cavalcante, Faustão, Gugu, R.R. Soares e Fernando Vanucci. Quase que os comprimidinhos não deram conta da ebulição interna que me acometeu. Após anos afastada da linguagem televisiva, considero imoral, ofensivo, degradante o modo como apresentadores, artistas e comerciais dirigem-se ao público. Não sabia se me revoltava contra a mídia ou contra o povo que permitia esse tipo de achaque.
Ainda não me recuperei da exposição à radiação televisiva. Eu meio que tinha esquecido de como as coisas são imbecis por default, ao abdicar de TV, rádio e jornal.
My fragile eggshell of mind não estava preparada para tanta merda em escala tão absurda -- e isso em tempos da maior revolução cultural de que temos registro.
Partilho de sua esperança de que essa nova geração internet tenha algum poder. Mas de que geração estamos falando? Da que usa os recursos da rede para ampliar seus horizontes, ou da que cria fotolog, manda scraps pelo orkut do tipo "Clique no peixinho para descobrir as maravilhas do universo!" e usa o youtube pra assistir os compactos dos episódios anteriores de
Malhação?
Be afraid, be very afraid.Pelo menos vamos garantir um lugar seguro de onde admirar o circo pegando fogo. Vai ser realmente lindo ver um bando de
morons com a faca e o queijo na mão morrendo de fome.
Panis et circensis!--Xochiquetzal.