sábado, 4 de agosto de 2007

Navigare necesse; vivere non est necesse

Io-Ho-Ho my ass

Navegantes do saber, certas pessoas decidem, desde muito cedo, dedicar suas vidas à exploração desse mare nostrum que é o conhecimento -- ignorando a verdadeira extensão dos horrores e maravilhas que se escondem na jornada. Os bestiários e portulanos dos que as precederam são ignorados: SAPERE AUDE -- OUSE SABER, e a experiência direta está no coração do ousar. Ali há dragões, dizem uns; Scylla e Charybdis espreitam um quadrante do Great, Unabridged and Forever Incomplete Map of Human Ignorance (Penguin Books, 1994, McClenahan, Mazuroski et al). Avalon se esquiva nas brumas; as torres de Atlântida podem ser vislumbradas sob as águas em dias claros de navegação fácil.

Contrariando a maioria e mandando o Velho do Restelo enfiar suas predições no cu, preparam-se, armando-se de curiosidade e estocando inocência. Aguardam então a maré e lançam-se na busca por novos territórios do saber, mesmo que alguns ainda tenham o senso de temer o abismo no fim do mundo. Correr distâncias, conquistar continentes, provar especiarias; ambiciosos, muitos navegantes jamais voltam ao seus portos de origem. Alguns o mar os engole; outros encontram seu El Dorado e resolvem ficar por lá, para desespero de famílias endividadas e noivas a mirar o horizonte. Os que retornam são estranhos seres híbridos, mudados para sempre pelo que testemunharam. Seu andar gingado de marinheiro acostumado com o ninar do oceano, seu olhar triste e oleoso de leão-marinho e sua aparência de eterna ressaca os traem -- parte de dois mundos e pertencentes a nenhum, vagam pelas tabernas contando seus casos, na esperança de, entre uma e outra garrafa de rum, encontrarem seus semelhantes.

Triste é o destino dos que provam o fruto da Árvore do Conhecimento. Como disse Byron:

"Sorrow is knowledge, those that know the most must mourn the deepest, for the tree of knowledge is not the tree of life."

Corsários da Triste Figura, aqui estamos nós. Apesar de risíveis na nossa angústia, acho que ainda podemos nos dar o crédito de, após tantos naufrágios e motins, continuarmos a navegar no escuro em busca... em busca do quê?
Não sabemos mais. Mas insistimos na eterna procura, no vagar. Como salmões subindo o rio para a desova, algo externo a nós nos impele, nos guia a alguma coisa que sabemos (ou esperamos?) estar lá. Abandonamos na escuna Status Quo e embarcamos sorridentes no Mary Celeste, sem saber por quê. Só sabemos que o mar muda aos seus, e que pirata que se preze não possui porto seguro. Orgulhosos de nossa temeridade, dos membros faltando e do limo nos dentes, seguimos cantando pela noite escura da alma. Navegar é preciso; viver não é preciso -- a frase que Pompeu usava para exortar seus marinheiros covardes um século antes de Cristo figura embaixo do bom e velho Jolly Roger.

Corsários zen-budistas, um dia perceberemos que nosso navegar continuará eternamente, até nos darmos conta de que não há porto final, tesouro final, nada a ser explorado, nada de novo sob o Sol. E agora, José? Meia-volta, volver?

No fucking way, buddy.

Questionar é minha natureza. Estou aqui para o butim, o rum, as brigas e as putas. Antes pirata equivocado do que estivador acomodado. No momento falta-nos a perspectiva (talvez por termos um olho a menos?) para saber se estamos errados ou não, se devemos persistir em nossos questionamentos ou desistir da busca. É um sofrimento inútil. Provamos do fruto da Árvore; there's no going back. Talvez se fundássemos um P.A. (Piratas Anônimos) com um programa de 12 passos, conseguíssemos aceitar nossa natureza com menos angústia, um dia de cada vez.

Buy the ticket, take the ride.

E fica o lirismo de Pessoa:

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

"Navegar é preciso; viver não é preciso".

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

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So it goes.

--Xochiquetzal.