Nunca deixarei de me assombrar de minha infinita capacidade de encontrar quem resuma o que sinto do modo que eu mesma o exprimiria, tivesse o talento, a vontade e mais juízo na cabeça.
Músicas, livros, poesias, trechos de filmes, pichações, dizeres afixados em um ponto de ônibus, fragmentos de conversa alheia registrados acidentalmente: de súbito me deparo com a expressão perfeita do que me enleva, horroriza ou interessa naquele exato momento, a forma feita verbo de meus tédios e angústias.
Após (mais um, e creio que derradeiro) Momento Amy Winehouse 2009, quando mandei meu emprego para onde o Sol não brilha (com consequências, variando do cômico ao descaradamente desagradável, ainda a conferir),amparada por quinze dias de atestado médico documentando o total esgotamento de minhas faculdades docentes/intelectuais/emocionais/sociais, encontro-me internada em minha cidadezinha natal nas montanhas do Rio de Janeiro, sob os cuidados de minha mãe e provocações de meu irmão. Nos últimos dez ou doze anos da minha vida não me lembro de ter passado mais do que três dias corridos aqui, três vezes ao ano; acabo de descansar, pobre neurastênica que sou, por uma semana -- com mais uma semana de repouso ainda pela frente. Uma semana de eu-sozinha revisitando a ópera do mundo nas ruazinhas do lugarejo onde nasci.
Percorro os paralelepípedos em permanente susto. Casarões centenários são furtados de minha vista por muros absurdamente altos, absurdamente cinzas. Os paredões de pedra que protegem minha cidadezinha estão purulentos de prédios. Chego à casa de meus avós para almoçar e o fantasma de um cachorro há muito morto recebe, ganindo baixo, os afagos de minha saudade. A casa não tem mais cachorro, crianças ou avô: abro a bonbonniére e encontro missais, santinhos de gente morta.
Durmo, vou a médicos, folheio as CARAS e Contigo! de minha mãe. Distraio-me das marcas do tempo na cidade, no rosto dos que eu amo e no meu próprio perdendo tempo ainda mais precioso na internet e, em momentary lapses of reason, lendo um dos muitos livros que trouxe comigo -- para aborrecimento de meus familiares, que não compreendem como eu posso me enfurnar em casa, absorta em livros, quando há tanta vida lá fora.
O problema, amados, é que aqui dentro, sempre... me parece melhor. Quando eu fechar os livros e sair ao sol novamente, mais pessoas terão se ido, mais muros subido e prédios maculado as minhas serras. Inevitável. Irreversível.
Fernando Pessoa fala por mim:
"Nada pesa tanto como o afecto alheio -- nem o ódio alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afecto; sendo uma emoção desagradável, tende, por instinto de quem a tem, a ser menos frequente. Mas tanto o ódio como o amor nos oprime; ambos nos buscam e nos procuram, não nos deixam sós.
O meu ideal seria viver tudo em romance, repousando na vida -- ler as minhas emoções, viver o meu desprezo delas. Para quem tenha a imaginação à flor da pele, as aventuras de um protagonista de romance são emoção própria bastante, e mais, pois que são dele e nossas. Não há grande aventura como ter amado Lady Macbeth, com amor verdadeiro e directo; que tem que fazer quem(m) assim amou senão, por descanso, não amar nesta vida ninguém?
Não sei que sentido tem esta viagem que fui forçado a fazer, entre uma noite e outra noite, na companhia do universo inteiro. Sei que posso ler para me distrair. Considero a leitura como o modo mais simples de entreter esta, como outra, viagem; e, de vez em quando, ergo os olhos do livro onde estou sentindo verdadeiramente, e vejo, como estrangeiro, a paisagem que foge -- campos, cidades, homens e mulheres, afeições e saudades --, e tudo isso não é mais para mim do que um episódio do meu repouso, uma distracção inerte em que descanso os olhos das páginas demasiado lidas.
Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente. Se realizasse algum sonho, teria ciúmes dele, pois me haveria traído com o ter-se deixado realizar. Realizei tudo quanto quis, diz o débil, e é mentira; a verdade é que sonhou profeticamente tudo quanto a vida realizou dele. Nada realizamos. A vida atira-nos como uma pedra, e nós vamos dizendo no ar, 'Aqui me vou mexendo'.
Seja o que for este interlúdio mimado sob o projector do sol e as lantejoulas das estrelas, não faz mal decerto saber que ele é um interlúdio; se o que está para além das portas do teatro é a vida, viveremos; se é a morte, morreremos, e a peça nada tem com isso.
Por isso nunca me sinto tão próximo da verdade, tão sensivelmente iniciado, como quando nas raras vezes que vou ao teatro ou ao circo: sei então que enfim estou assistindo à perfeita figuração da vida. E os actores e as actrizes, os palhaços e os prestidigitadores são coisas importantes e fúteis, como o sol e a lua, o amor e a morte, a peste, a fome, a guerra na humanidade. Tudo é teatro. Ah, quero a verdade? Vou continuar o romance..."
Singing Lead Soprano in a Junkman's Choir,
Músicas, livros, poesias, trechos de filmes, pichações, dizeres afixados em um ponto de ônibus, fragmentos de conversa alheia registrados acidentalmente: de súbito me deparo com a expressão perfeita do que me enleva, horroriza ou interessa naquele exato momento, a forma feita verbo de meus tédios e angústias.
Após (mais um, e creio que derradeiro) Momento Amy Winehouse 2009, quando mandei meu emprego para onde o Sol não brilha (com consequências, variando do cômico ao descaradamente desagradável, ainda a conferir),amparada por quinze dias de atestado médico documentando o total esgotamento de minhas faculdades docentes/intelectuais/emocionais/sociais, encontro-me internada em minha cidadezinha natal nas montanhas do Rio de Janeiro, sob os cuidados de minha mãe e provocações de meu irmão. Nos últimos dez ou doze anos da minha vida não me lembro de ter passado mais do que três dias corridos aqui, três vezes ao ano; acabo de descansar, pobre neurastênica que sou, por uma semana -- com mais uma semana de repouso ainda pela frente. Uma semana de eu-sozinha revisitando a ópera do mundo nas ruazinhas do lugarejo onde nasci.
Percorro os paralelepípedos em permanente susto. Casarões centenários são furtados de minha vista por muros absurdamente altos, absurdamente cinzas. Os paredões de pedra que protegem minha cidadezinha estão purulentos de prédios. Chego à casa de meus avós para almoçar e o fantasma de um cachorro há muito morto recebe, ganindo baixo, os afagos de minha saudade. A casa não tem mais cachorro, crianças ou avô: abro a bonbonniére e encontro missais, santinhos de gente morta.
Durmo, vou a médicos, folheio as CARAS e Contigo! de minha mãe. Distraio-me das marcas do tempo na cidade, no rosto dos que eu amo e no meu próprio perdendo tempo ainda mais precioso na internet e, em momentary lapses of reason, lendo um dos muitos livros que trouxe comigo -- para aborrecimento de meus familiares, que não compreendem como eu posso me enfurnar em casa, absorta em livros, quando há tanta vida lá fora.
O problema, amados, é que aqui dentro, sempre... me parece melhor. Quando eu fechar os livros e sair ao sol novamente, mais pessoas terão se ido, mais muros subido e prédios maculado as minhas serras. Inevitável. Irreversível.
Fernando Pessoa fala por mim:
"Nada pesa tanto como o afecto alheio -- nem o ódio alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afecto; sendo uma emoção desagradável, tende, por instinto de quem a tem, a ser menos frequente. Mas tanto o ódio como o amor nos oprime; ambos nos buscam e nos procuram, não nos deixam sós.
O meu ideal seria viver tudo em romance, repousando na vida -- ler as minhas emoções, viver o meu desprezo delas. Para quem tenha a imaginação à flor da pele, as aventuras de um protagonista de romance são emoção própria bastante, e mais, pois que são dele e nossas. Não há grande aventura como ter amado Lady Macbeth, com amor verdadeiro e directo; que tem que fazer quem(m) assim amou senão, por descanso, não amar nesta vida ninguém?
Não sei que sentido tem esta viagem que fui forçado a fazer, entre uma noite e outra noite, na companhia do universo inteiro. Sei que posso ler para me distrair. Considero a leitura como o modo mais simples de entreter esta, como outra, viagem; e, de vez em quando, ergo os olhos do livro onde estou sentindo verdadeiramente, e vejo, como estrangeiro, a paisagem que foge -- campos, cidades, homens e mulheres, afeições e saudades --, e tudo isso não é mais para mim do que um episódio do meu repouso, uma distracção inerte em que descanso os olhos das páginas demasiado lidas.
Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos, porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a toda a gente. Se realizasse algum sonho, teria ciúmes dele, pois me haveria traído com o ter-se deixado realizar. Realizei tudo quanto quis, diz o débil, e é mentira; a verdade é que sonhou profeticamente tudo quanto a vida realizou dele. Nada realizamos. A vida atira-nos como uma pedra, e nós vamos dizendo no ar, 'Aqui me vou mexendo'.
Seja o que for este interlúdio mimado sob o projector do sol e as lantejoulas das estrelas, não faz mal decerto saber que ele é um interlúdio; se o que está para além das portas do teatro é a vida, viveremos; se é a morte, morreremos, e a peça nada tem com isso.
Por isso nunca me sinto tão próximo da verdade, tão sensivelmente iniciado, como quando nas raras vezes que vou ao teatro ou ao circo: sei então que enfim estou assistindo à perfeita figuração da vida. E os actores e as actrizes, os palhaços e os prestidigitadores são coisas importantes e fúteis, como o sol e a lua, o amor e a morte, a peste, a fome, a guerra na humanidade. Tudo é teatro. Ah, quero a verdade? Vou continuar o romance..."
Singing Lead Soprano in a Junkman's Choir,
--Xochiquetzal,