terça-feira, 25 de novembro de 2008

Cirque de la Pluie







As ruas de Itaperuna haviam se transformado num Mar Vermelho de lama e esgoto quando entrei triunfante na cidade -- num ônibus 1001. A rodoviária era uma ilha de concreto da era Brizola, cercada de água podre por todos os lados -- o teatro dos horrores das rodoviárias do interior fluminense, com sua trupe aumentada pelas pessoas ilhadas pena enchente: os mendigos e bêbados da casa enrodilhavam-se com um número ainda maior de cachorros esqueléticos, formas de miséria indissolúveis em busca de calor e conforto; da margem oposta da rua os brados de um pastor semeavam a Boa Nova nos tímpanos férteis de um grupo bem-vestido, que de vez em quando jogava os braços para o alto em estertores pentecostais, revelando rodelas de suor nas axilas. Ao lado da igreja, o Albino's Hotel e Restaurante Self-Service (agora com churrasco!) disputava comensais náufragos com a Pizzaria's Supimpa's.

Sentei-me, liguei pro meu pai e confirmei minha suspeita de que não poderia sair dali enquanto as águas não baixassem. Resignada, botei meu mp3player pra tocar e, LHC vibrations or not, a guitarra de Stevie Ray Vaughan começou a chorar "Texas Flood":

Well there's floodin' down in Texas... all of the telephone lines are down
Well there's floodin' down in Texas... all of the telephone lines are down
And I've been tryin' to call my baby... Lord and I can't get a single sound

Well dark clouds are rollin' in... man I'm standin' out in the rain
Well dark clouds are rollin' in... man I'm standin' out in the rain
Yeah flood water keep a rollin'... man it's about to drive poor me insane

Well I'm leavin' you baby... Lord and I'm goin' back home to stay
Well I'm leavin' you baby... Lord and I'm goin' back home to stay
Well back home are no floods or tornados... baby and the sun shines every day


Tá no inferno, abraça o capeta, certo? Resolvi transformar meu Saison l'Enfer em expedição antropo-filosófica e comecei a prestar atenção do Grand Guignol ao meu redor. Minha percepção se debatia entre o espetáculo dos mendigos invisíveis e seus incríveis cachorros amestrados; equilibristas que ousavam abrir caminho pelos escombros à deriva (alguns com crianças de colo, Ladies and Gentlemen!); mágicos que tiravam sorrisos da cartola tentando entreter a platéia com comentários do tipo "que chuva, hein? Jesus...". De vez em quando estreitava meu foco em direção aos contorcionismos dos crentes de sovaco suado, para ser distraída pelos malabarismos de motoristas navegando a torrente de merda marrom.

It's... MONTY PYTHON'S DROWNING CIRCUS!

(A palhaça era eu, ridícula na minha mania de processar o absurdo ao meu redor, levando tortas de revolta azeda na cara para ninguém rir.)

Mas deixe estar. Um dia minha maquiagem derrete e eu toco fogo nessa porra toda.

(Muda o tom antes de ganhar uma temporada grátis em hotel com suítes de paredes fofinhas e roupões de mangas compriiiiiiiiidas)

Cirque de la Pluie deixado pra trás (ou empurrado pra dentro), pendências em Itaperuna (cujo único mérito consiste em significar "Rolling Stone" em tupi) resolvidas, volto ao espancando matando cachorro a grito, dando nó em pingo d`água, beliscão em azulejo, murro em ponta e faca e mais do que chuchu na serra; volto em grande estilo, enfiando o pé na jaca para chorar a morte da bezerra. Ponham água no feijão, amigos, pois Xochiquetzal está cheia de som e fúria.



Alguns clonazepans depois, sinto-me capacitada a responder o post da Bel.

ENADE, amiga? Xochiquetzal se comisera. Não peguei a época dessa porcaria, simpatizo com suas dores -- até com as alcoólicas, já que ando dando pra beber (rsrs) Bacardi até invocar o Raul toda noite -- de todo coração. No entanto, peço por caridade que você retire o poeta fingidor do cu. Poesia é coisa sacra, amiga. Depois dos músicos e carinhas com pinta de estudante de Humanas (minha mais recente tara é pelo Pedro Luís do Pedro Luís e a Parede) os poetas são minha presa preferida. Mas no cu, não.

Mas voltemos ao seu post:

"Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura."

Ontem estava tendo espasmos orgásticos no cérebro ao ler Ficciones de Jorge Luiz Borges, que é tipo assim o M.C. Escher da literatura mundial. Leitura convoluta, que dobra-se sobre si mesma e se auto-referencia, envolvendo o leitor num maelström de irrealidade e sonho, pontos de vista dentro de pontos de vista dentro de pontos de vista como numa boneca russa. Deus meu, que tesão de livro. O conto Pierre Menard, autor del Quijote é Saussure puro ao expor as entranhas do maior clássico da literatura ocidental às transformações dos pontos de vista. Pierre Menard decide reescrever, palavra por palavra, alguns capítulos do romance de Cervantes, copiando-o sem copiá-lo, num palimpsesto alucinado que prova de uma vez por todas que não há momento como o presente e que nem mesmo a literatura é capaz de legar algo à posteridade. Aquela ganha novo alento ao ser analisada sob um anacronismo deliberado (imagine o Quijote sendo escrito por um francês obscuro do século XIX, Madame Bováry por uma monja medieval, A Metamorfose por um autóctone de Júpiter em 7098?).

Ah, eu adoro tomar porrada da arte. Cada vez que levo um tapa no intelecto do tipo do de Borges, fico molhadinha. Bate mais, bate mais que eu gamo!

"Pensar, analizar, inventar (me escribió también) no son actos anómalos, son la normal respiración de la inteligencia. Glorificar el ocasional cumplimiento de esa función, atesorar antiguos y ajenos pensamientos, recordar con incrédulo estupor lo que el doctor universalis pensó, es confesar nuestra languidez o nuestra barbarie. Todo hombre debe ser capaz de todas las ideas y entiendo que en el porvenir lo será."

Construir, reconstruir, colher pensamentos alheios e incorporá-los ao que se é... partilhar esse blog com a Bel têm sido uma viagem insólita -- a recantos da minha personalidade que eu julgava inacessíveis ou simplesmente inexistentes. Vejo-me pelos olhos do Atillah (e creio que vice-versa) há tantos anos que já tinha me acostumado com o toque de esquizofrenia que a presença dele adiciona à minha vida. A chegada da Bel foi mais uma voz no tumulto da minha cabeça, mas uma voz que confunde sem vertigem, ilumina sem cegueira. Encontrei-me diversas vezes ao me perder nela, para em seguida me perder de novo e me encontrar navegando minha psique sem astrolábio ou portulano. Sinal da minha loucura adorar isso? Última chamada de embarque para a Stultifera navis, galera!


Considerações sobre diários (eu também tenho os meus desde a infância) depois.

"Caminante, no hay camino, se hace camino al andar"...

Caminando,

--Xochiquetzal.


Songs to this post:

"Tupelo" - John Lee Hooker
"Texas Flood" - Stevie Ray Vaughan
"When the Levee Breaks" - Led Zeppelin

Um comentário:

Anônimo disse...

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