sábado, 26 de abril de 2008

Ascensão e Queda da Mulher Impermeável, ou: a Rejeição da Autora Enquanto Oferenda para Iemanjá

Odoyá!
Eu gostaria de começar esse post dizendo que sempre fui apaixonada por água. Sempre morei de frente pra praia e uma de minhas memórias mais antigas é do dia em que a minha mãe me levou, aos dois ou três anos, ao Clube de Regatas Icaraí para me matricular em um curso de natação. Entrei no clube e fiquei fascinada com as piscinas, as pessoas nas piscinas, o som das coisas e o cheiro de cloro; no momento em que minha mãe soltou a minha mão para conversar com a secretária sobre aulas para crianças, disparei em direção à piscina mais funda do clube e pulei sem hesitação, para desespero dela que mergulhou atrás de mim de roupa e tudo, enquanto eu boiava satisfeita, feliz de estar em meu elemento.

Daí, jamais temi a água. Sempre fui considerada excelente nadadora e meus pais me deixavam vadiar pela areia sem medo (uns irresponsáveis). Logo, na minha memória, eu era um Mark Spitz feminino. Acho que entrei no oceano pela última vez aos doze anos de idade. A coisa começa aí.





Tendo mudado para um apartamento perto da praia, fui aos poucos me acostumando com a realidade fanstástica e o mundo paralelo dos seres abençoados pela proximidade do oceano. Passei alguns dias confusos caminhando pela areia e deixando a maresia emaranhar meus cabelos; pouco a pouco fui me aventurando a sentar perto da arrebentação e olhar o céu, embasbacada pela realização de que aquilo ali era a minha casa, que eu não estava ali de férias, que o sol atrás de mim e a lua nascendo feito uma laranja atômica sobre o mar eram reais. Então resolvi entrar na água.


Desencavei um maiô azul que devia ter zégzy na época da minha mãe (e que ficava entrando na minha bunda) e parti rumo ao oceano, num dia nublado cheirando à chuva. Não havia viv'alma (HA! Sempre quis usar essa palavra!) na praia, muito menos na água. As ondas não eram ameaçadoras, mas para a minha memória de menina do Rio, não eram nada a se temer. Enquanto meu marido catava conchinhas (sério), tirei a canga, exibindo minhas formas calipígias e minha tez translúcida para as gaivotas e os dois cães vadios que vivem por ali, e caminhei para a arrebentação.


O momento em que as ondas começaram a lamber meus tornozelos desencadeou um dos flashbacks mais possantes que tive em toda a vida, algo comparável às madalenas de Proust, talvez. O cheiro do sal, o balanço da maré -- foi como ser criança de novo, não ter preocupações de novo, ser sã de novo, estar inteira de novo. Acho que tinha o sorriso mais radiante do mundo no rosto, e sinceramente dei graças a Deus por estar ali, naquele momento, naquele ponto da Terra, viva, respirando. A água bateu nos meus joelhos. Comecei a pensar em Iemanjá e em quão bela é a idéia da Rainha do Mar. A água chegou ao meio das minhas coxas. Memórias da Bahia lavaram meu crânio em água salgada. Acho que estava rindo alto. A água chegou à minha cintura.


E, de repente, eu estava submersa, enfiada em um vão ou banco de areia, sendo puxada para baixo por uma corrente poderosa. Lembro-me de não ter me desesperado: mantive a calma enquanto tentava discernir a luz do céu embaixo d'água e nadei em direção dela -- para ser sugada para baixo novamente, e então arremessada para a frente por uma onda gigantesca , totally out of the blue.




Onda após onda, corrente sobre corrente, me embaralhei, fui embaralhada, me perdi. Não sabia mais para onde ir, onde era o alto e onde era o fundo, como respirar. Foi como ser uma boneca de trapo da gigante máquina de lavar de Deus. Algumas vezes eu conseguia subir à superfície e respirar um pouco de ar misturado à água dos meus pulmões, e ver que estava sendo rapidamente carregada para longe da arrebentação, into the wild blue yonder. A força do mar me puxava, me empurrava, me jogava para cima e para baixo; bati a cabeça contra o fundo -- de areia, ou não estaria escrevendo esse post -- incontáveis vezes. Meu maiô estava na cintura; eu tinha sal e desespero nos pulmões. Pensei que iria morrer.


Em algum momento ouvi meu marido gritando da praia, perguntando se eu estava bem; de algum modo consegui gritar um "SIM!" em resposta, ou ele teria ousado um resgate e teríamos sido duas oferendas à Iemanjá. Lembro-me de sua risada histérica enquanto assistia ao que devia ser um espetáculo de bunda, pernas, braços e cabelos cobertos de alga aparecendo e reaparecendo -- afinal, ele havia ouvido minhas estórias de poder natatório inúmeras vezes e acreditava que eu era o Príncipe Submarino em pessoa. Sorte nossa.



Depois da risada veio a primeira inalação total de água. Fechei os olhos e afundei. Tudo ficou quieto -- as batidas do meu coração, o aperto no peito, o rugir das ondas sobre a minha cabeça -- todo som havia cessado. Então abri os olhos -- e o que vi foi lindo.


Do ponto onde eu estava, podia ver as ondas passando uma após a outra sobre a minha cabeça, filtrando a luz do sol poente e a decompondo de modo fantástico, renda tremeluzente de verdes e azuis. Tudo era silêncio e luz. Perdi a noção de onde estava e do que estava acontecendo comigo; acho que estava morrendo.


Dizem que quando você morre a sua vida passa pelos seus olhos. Eu sempre pensei que a morte traria consigo algo de sublime, que eu pensaria nos meus entes queridos, nos meus poemas preferidos, que compreenderia afinal, que teria uma epifania que justificasse toda a dor e o sofrimento de minha caminhada pela Terra. Pensava que me arrependeria dos meus erros, ansiaria pelos meus amores... mas não. Enquanto eu estava em estupor, morrendo no leito do oceano, assistindo absorta às ondas que marcavam o compasso do meu coração desesperado, a única palavra que me veio à mente foi:




MAIOMUSTAIANAYSTARD









Isso me sacudiu do meu estupor -- coé, de modo ALGUM eu morreria com uma mistura de maionese e mostarda como meu pensamento derradeiro. Fiquei indignada com meu próprio ridículo, e de algum modo consegui nadar/rolar/boiar até a praia, onde cheguei seminua, rindo, chorando e vomitando água salgada. Não sei como cheguei até lá. Lembro de estar de joelhos tossindo e do meu marido correndo, rindo, até mim -- até perceber meu estado, o que havia realmente acontecido e parecer indeciso entre rir ainda mais e verificar se eu estava bem.


Ainda não acredito que juntei mais uma near-death experience à minha coleção. Ainda não acredito que fui burra a ponto de entrar numa praia desconhecida em um dia que prometia borrasca, e que sobrevivi para contar a estória. Poucas vezes me senti tão humilhada -- pela força do oceano, que me colocou de joelhos, pelo meu próprio orgulho imbecil em uma habilidade que não estava mais lá, pela vida e pela morte, pelo absurdo dos meus pensamentos finais. Lá estava eu, seios à mostra, areia em orifícios do meu corpo que eu nem sabia que existiam, pulmões, estômago, ouvidos ardendo de sal.


Quase dei uma de Jeff Buckley pra cima de mim mesma e de todos que me amam; e quase consegui fazer parte do infame grupo dos que morrem de forma bizarra aos 27 anos de idade, sem a menor intenção e sem ao menos estar sob a feliz influência de algum composto químico.


Quatro dias depois de Iemanjá ter me recusado como oferenda, todos os músculos do meu corpo doíam insuportavelmente, não obstante a quantidade avassaladora de relaxantes musculares que eu tomei. Não conseguia me recordar do esforço que fiz para ficar viva, mas meu corpo fez questão de me lembrar por mais de 96 horas de desconforto espartano. Ainda sai areia dos meus ouvidos quando eu uso cotonetes.


E tudo que me veio à mente foi "MAIOMUSTAIANAYSTARD"


Acho que já me recuperei do choque. Meu marido me disse que a coisa toda não durou mais do que quinze minutos -- me pareceu uma eternidade.


O tempo voa quando se está morrendo.


Vi-me forçada a repensar muita coisa desde meu (des)encontro com Iemanjá. Meu relacionamento amoroso com o mar é uma delas -- minha confiança furiosa em minhas próprias habilidades é outra. Vai ver que não sou o ápice da perfeição como no fundo, no fundo, realmente no fundo, sempre pensei que fosse.


Odoyá, minha mãe.


Happy to be writing this,

--Xochiquetzal.


Top Songs to Listen to When You're Drowning:

"Drown in My Own Tears" - Ray Charles

"Grey Ghost" - M. Doughty

"Tangled Up in Blue" - Bob Dylan and...

"Knocking on Heaven's Door" - Bob Dylan (sorry, I can't help it)


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