Regozijai-vos, irmãos de fé -- Xochiquetzal está no meio de vós!
É noite de domingo e só agora terminei de preparar (parte das) aulas para a semana que vem. Não sei como sobrevivi até aqui, após ter cometido a temeraridade de aceitar NOVE turmas no novo emprego, além dos cinco alunos particulares que, além do ganha-pão, são o verdadeiro orgulho e alegria desta professora que vos fala.
Trabalho de segunda à sexta das 8 da manhã às 20:30 e sábados até o meio-dia. Segunda cheguei em casa gemendo de tanta dor nas pernas; terça tomei meia cartela de paracetamol e uma garrafa de café (estimativas da Dona Clarice da cantina) para dar conta do recado; quarta lecionei sob efeito de quatro relaxantes musculares do tipo que permitiriam a uma atriz pornô gravar uma quádrupla penetração sob gravidade zero; quinta perdi a voz -- por não estar mais acostumada a vigiar seu volume atordoante ou pelo constante entra/sai de salas com ar-condicionado para corredores de temperatura sertaneja, não sei; sexta tive que gastar R$ 12 num táxi para casa porque não conseguia caminhar do curso até o ponto de
ônibus van. Aí no sábado gastei quase R$ 100 numa sandalinha Usaflex (daquelas que enfermeiras usam e senhoras de pernas varicosas acham
trendy) e a minha vida mudou. Continuo cansada ao ponto da afasia/agnosia pós-21hs, mas pelo menos
I'm walking on sunshine, yeah yeah...E olha que a época de correção de exercícios e provas em massa ainda não chegou. Mas tá bom: manifesto meu espanto pela minha capacidade
sherpa de trabalho como tributo à remuneração indecente que estarei recebendo em troco de minha saúde, meu casamento, minha vida social e estabilidade mental. Posso chegar a julho muda, numa cadeira de rodas, divorciada, rechaçada pelos amigos e psicótica -- MAIS CHEGAREI RICA, MWAHWAHWAHWAHWA!!!!!!!!!!!!!!!
Mas então. Enquanto minha escalada ao poder total e absoluto não atinge seu ápice, decidi me distrair descrevendo dois episódios curiosos da minha semana, ambos envolvendo tópicos extremamente controversos para mim: crianças e religião.
O primeiro ocorreu quando recebi meu quadro de horários um dia antes das aulas e fiquei apoplética ao constatar que mais da metade de meus grupos era de crianças -- crianças criancíssimas, de 8 a 12 anos de idade. Já havia trabalhando com adolescentes antes, sem maiores problemas do que o eventual confisco de iPod e alfinetadas destinadas a reforçar caráteres em formação, mas cara, 8 anos? 10 anos? EU!?
A diva que mora dentro de mim manifestou-se com toda sua fúria de
prima donna. Contestei a distribuição meus grupos de modo absurdamente impulsivo (O RLY?) no meio da reunião pedagógica. Fui pra casa pensando em me demitir, resmungando que não tinha feito faculdade para ser babá bilíngüe, que para uma pessoa com meu nível cultural e minha capacidade profissional, passar horas ensinando cores, nomes de animais e cantando
Twinkle, twinkle, little star vestida de Barney (minha imaginação alimentou o fogo de minha fúria) era um absurdo, um achaque, um vitupério. Eu havia deixado claro minha ojeriza por pimpolhos desde o início. Eu tenho gatos, não filhos. Eu não vou em festa de criança. Eu não finjo interesse em High School Musical e abomino o modo condescendente da maioria dos adultos tratar a molecada.
Dia seguinte, sou chamada à coordenação e informada de que manifestei meu repúdio de forma veemente o bastante para que a chefia reduzisse meu número de grupos
kids -- apesar de não poder fugir ao meu destino de Eliana biglota, já que todas as professoras fêmeas TINHAM que pegar turmas de crianças. Como se o apego aos pivetes viesse gravado em nossos cromossomos, certo? Machismo! Como OUSAM?
Mas tudo bem. Surpresa por não ter sido sumamente demitida (como quando de uma situação semelhante em uma conhecidíssima escola de idiomas em Minas Gerais), aceitei meus manuais do professor coloridíssimos, conformada com minha condição inferior de fêmea docente. Marchei funebremente rumo à sala onde dezesseis petizes de nove anos me aguardavam.
Eles não paravam quietos. Eles falavam todos ao mesmo tempo. Eles me obrigavam a forçar ainda mais a minha voz. Eles não permitiam que eu me sentasse um pouco para descansar as pernas. Eles alimentavam minha hiperatividade com a deles. Eles não ligavam para meu excesso de energia. Eles respondiam às minhas técnicas insanas de transferência de conhecimento. Eles eram espertos. Eles eram engraçadinhos.
E, no final da aula, quando abri a porta e me despedi muito seriamente da turma, fui surpreendida por uma fila indiana de alunos esperando um beijo e um abraço para sair da sala. Alunos dizendo que eu era a tia mais legal que eles já tiveram. Alunos que me puxavam pela mão para me apresentar aos pais. Pessoinhas de um amor sem comedimento.
Me peguei sorrindo enquanto era seguida por grupinhos de alunos disparando perguntas do tipo "Tia, você tem namorado? Tia, onde você mora? Tia, você gosta de Naruto? Tia, posso trazer um desenho pra você na aula que vem?". Me peguei sendo o alvo das piadinhas de todos os professores que testemunharam meu ataque de pelanca na coordenação. Afinal, eu parecia ter nascido para isso.
Não, não, mil vezes não! Não seria agora, aos 28 anos, que um conceito tão arraigado como o de minha aversão às crianças seria revisto. Calma, Xochiquetzal, calma: é a TPM, é o stress de início de semestre, é a novidade do novo ambiente de trabalho, é rebote do seu abandono da nicotina há quase um mês.
Tira esse sorriso da cara. Você é professora de língua inglesa. Tia do inglês não. Nãonãonão.
Not a chance, no fucking way, no.As segundas aulas chegaram, e com elas aluninhos trazendo presentes. Flores de papel com meu nome no miolo delas. desenhos de uma mulher de saia e cabelos negros de mãos dadas com o Bob Esponja, ao lado de um abacaxi no fundo do mar. Bilhetinhos com corações.
Iloveyouteachers.
Fui pega dançando High School Musical enquanto tentava conter uma dança das cadeiras fora de controle. Pela coordenadora que ouviu minha arenga anti-kids. Que entrou na minha sala superlotada de aluninhos de nove anos, pegou minha folha de chamada e disparou à queima-roupa:
"Josiane, Yuri, Rodrigo, Gabriel, Lucas, Gabriela, Mateus e Clara, vocês vão pra turma da Tia Aninha na sala 2. A sala está muito cheia, temos que dividir o grupo."
As crianças congelaram. Eu congelei.
They. They were going to take my babies. NOOOOOOOOO!
Fiquei assistindo sem reação enquanto meus alunos (que por ironia do Inefável eram quase todos os que haviam trazido presentinhos) eram conduzidos em lágrimas para outra sala. Houve choro e ranger de dentes, leitores. Alunos se abraçando às minhas pernas e pedindo que eu convencesse a Tia Aninha a deixá-los ficar. E eu não pude fazer nada.
Dingo took my babies.
Continuo com o resto da ninhada, mas de coração partido ao ver meus bichinhos sendo desmamados. Ganhei uma rosa de papel de uma Josiane lacrimosa, que pediu que eu só a desdobrasse depois da aula.
"Para uma grande muler. Teacher eu amo vc."
(silêncio significativo)
Reflitam:
A língua é o chicote da bunda.Mas então. Religião.
Um de meus alunos particulares, que vamos chamar de Bernardo, é
crente evangélico.
Crente Evangélico
hardcore, daqueles que põem o medo do Senhor (ou melhor, dos seguidores do Senhor) em meu coração -- apesar de ser uma figura bonachona que dá em cima (de brincadeirinha, sem qualquer malícia, afinal é o jeitinho dele, claro, esse povo vê maldade em tudo) de qualquer criatura não-mutilada que faça xixi sentada -- eu incluída, claro. Ensino o Bernardo há mais de seis meses e poucas são as aulas em que o assunto religião não venha à baila de um modo ou de outro, geralmente entre cantadas. Tudo começou com uma aula sobre preferências literárias, na qual ele me disse que seu livro preferido era a Bíblia e me perguntou o que eu achava dela. Respondi sinceramente, dizendo que era um entre muitos outros livros de sabedoria em cujo nome atrocidades injustificáveis são e foram cometidas. Foi o início de um insidioso programa de salvação de minha alma
e sedução de meu corpo que me rende muitas reflexões..
O tema da aula passada foi esportes.
"Quem é seu atleta preferido e por quê?", perguntei, seguindo o livro do professor.
"Kaká... porque ele é um bom jogador e porque ele é meu irmão cristão.", respondeu Bernardo, sorrindo.
"Eu pensava que de acordo com as palavras de Jesus, éramos todos irmãos. Isso quer dizer que o fato de eu não ser cristã -- não acreditar que Jesus é Deus -- não faz de mim sua irmã?"
"Nem todos são filhos de Deus, Xochiquetzal."
"Então você não me considera sua irmã, Bernardo? Cara, eu sou pagã e te considero meu irmão. Eu não sou filha de Deus? É isso que você está me dizendo?", não resisti.
"Enquanto você não aceitar Jesus Cristo como seu Deus e Salvador, você é apenas uma
criatura de Deus e não filha Dele.", declarou com toda autoridade.
"Cê tá de sacanagem."
"Claro que não. Tá na Bíblia."
"Não tá."
"Tá."
"Da última vez que eu li a Bíblia, Jesus andava com um monte de vagabundos, coletores de impostos e putas. Ele tratava todos como irmãos. Eu não coleto impostos, não vagabundeio e não sou puta. E não sou sua irmã?"
"Não, enquanto não proclamar Jesus como seu Salvador."
Olhei para ele com uma expressão entre divertida e atônita.
"So, dude, question number three... what sport would you like to try and why?"MIEDO, leitores. E olha que eu sou apenas uma professora de inglês.
Antes eu fosse puta: não me faltariam irmãos.
Perpetually Astonished,
--Xochiquetzal.