Terça-feira, 10 de junho de 2008, cinco horas da tarde. Caminho rumo à rodoviária para buscar uma encomenda, carregando comigo o saquinho plástico de ração que levo, sempre que posso, para dar aos cães abandonados que amargam as calçadas da cidade. Meu amor pelos animais já virou piada entre família e amigos; a dor que sinto por eles se renova a cada quarteirão, quando me deparo com o inelutável esqueleto de quatro patas corroído pela sarna, a cadelinha grávida mancando de uma pata, o cachorro de raça desamparado, abandonado pelo dono que mudou de endereço, mudou de opinião, mudou de paciência e, se há justiça nesse mundo, mudou para o quinto dos infernos, deixando o amigo aturdido, entristecido e faminto para trás.
Já passei da época em que me incomodava com os comentários imbecis que meu cuidar dos animais causava. Aos que me dizem que é um absurdo alimentar cachorros quando há tanta criança passando fome, pergunto quantas crianças famintas eles alimentam por dia; aos que riem da maluca andando pelo centro da cidade com um cortejo de caudas balançantes, deixo que as caudas sorriam por mim.
Ao chegar na rodoviária me deparei com uma cachorrinha bege, gordinha, atarracada, vira-lata do focinho ao rabo, dormindo estirada no meio da calçada. Parei para olhar a bichinha; a placidez dos cães sempre me acalmou. Já mencionei aqui os versos de um poeta esquecido, cujo nome, José Paulo Paes (http://www.revistapiaui.com.br/artigo.aspx?id=638), descobri graças ao divino Google:
"Meu amor é simples, Dora,
como a água e o pão.
Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão." Somente os capazes de olhar para cima no olhar para dentro dos olhos de um cão me compreendem, e neles encontro uma paz de pertencença, um reconhecimento atávico. A paz da cachorrinha bege me invadiu a ponto de eu não parar para dar um pouco de ração. Decidi deixá-la dormindo, sonhando seus sonhos de cão, enquanto buscava a encomenda. Ela estaria ali na saída e então eu poderia alimentá-la. Entrei.
Três pessoas na fila do guichê depois, ouço o ruído de pneus seguido de um urro agonizante, um corte sônico de dor vindo do lado de fora, repetido, repetido, a dor num crescendo lancinante. Tapei os ouvidos e olhei para o portão.
A cachorrinha bege meio que corria, meio que escorria, meio que se projetava ganindo aquela nota primeva, a pata dianteira virada num ângulo impossível, ossos projetando-se sob a pele, o maxilar destruído numa baba de sangue e cálcio. Pensei ter visto uma orelha fora do lugar; quando ela chegou um pouco mais perto em sua via -crúcis rumo ao banheiro masculino, notei que a orelha deslocada era na verdade a pele de boa parte da testa, escalpelada pelas rodas de um MONSTRO que, segundo as pessoas que esperavam os ônibus do lado de fora, subiu na calçada PARA PEGAR O BICHINHO DE PROPÓSITO.
Meu mundo ficou negro. Minha cabeça rodava, segurei a ânsia de vomitar, suei frio, senti todos os clichês emocionais de uma compilação de
Sabrinas e
Julias ao mesmo tempo; larguei minhas bolsas no chão e comecei a chorar desesperadamente. A princípio não tive coragem de entrar no banheiro e ver o estrago; me limitava a chorar, a pedir ajuda, a gritar que alguém chamasse a polícia, a guarda municipal, a secretaria de bem-estar animal, me ajudasse a levar o bichinho para uma clínica veterinária.
Ninguém. Foi como se eu não estivesse ali, ou pior, como se o rastro de sangue do portão ao banheiro fosse invisível, meus pedidos inaudíveis, como se alguém tivesse apertado o MUTE do mundo ou eu estivesse falando esperanto.
Entrei no banheiro e vi a cachorrinha sangrando, encolhida num canto em estado de choque. Conferi a extensão dos danos -- seria uma lenta agonia se nada fosse feito. Os funcionários da rodoviária tentaram me tirar do banheiro.
"Acalme-se minha senhora, é só um cachorro, daqui a pouco morre, essas coisas acontecem, a senhora está muito nervosa, não é nossa responsabilidade, mas a senhora não grite comigo que eu só trabalho aqui, não sabemos o telefone do bem-estar animal, acalme-se senhora, ah, sabemos sim, eles estão vindo recolher o cachorro e a senhora pode ir pra casa, o quê, a senhora está me chamando de mentiroso, minha senhora, olhe o inconveniente, não posso deixar que você use o telefone do guichê, mas a senhora se controle..."Não sei quanto tempo passou ou quantas pessoas passaram por mim. Fui ignorada. Ninguém me viu, me ouviu, me ajudou. Sentei no chão do banheiro e chorei, pedindo desculpas à cachorrinha por não poder fazer mais nada, sem poder tocá-la por receio da reação dela, naquele estado.
Um homem entrou no banheiro e ajoelhou-se do meu lado. Senti o cheiro acre da mendicância antes de olhar para ele: maltrapilho, sujo, bafo de álcool, cabelo e barba desgrenhados em uma só massa indistinta sob um boné "VOTE EM FULANO", três sacos enormes de latas de alumínio nos braços. Sem falar comigo ou me olhar nos olhos esse homem pegou a cachorrinha, que chorou sem atacá-lo, e grunhiu de cabeça baixa que a levaria onde eu quisesse.
Assombro.Pelo fato de alguém ter decidido me ajudar, e por esse alguém pertencer à classe de pessoas que fui adestrada por anos de Rio de Janeiro a ignorar completamente, a fingir que não existe, a não tocar. Um borrão marrom incomodando a paisagem, empesteando as ruas, um cão. Que veio até mim.
Seguimos os três, cão, pária e brâmane pelas ruas da cidade, o cão chorando de dor, o pária segurando o cão, a brâmane arrastando as sacolas de latinhas, os três sujos de merda, de sangue e de olhares que não viam, de rostos virados para o outro lado.
Chegamos à maior clínica da cidade e fomos imediatamente atendidos pelo veterinário responsável, que mesmo ao ser informado que o animal era de rua e havia sido atropelado tomou todas as providências de emergência. Pata fraturada, maxilar e dentes triturados, hemorragia interna e sabe-se o quê por baixo do escalpo do crânio. Enquanto isso eu explicava os procedimentos para o homem que me ajudou -- e permaneceu do meu lado o tempo todo -- em termos leigos. Após os primeiros socorros, o veterinário abriu o computador para registrar a cachorrinha:
"Qual é o nome dela?"
"Não sei, ela foi atropelada na rua, não tem nome não..."
Minha resposta foi interrompida pelo homem, que pela primeira vez levantou a cabeça:
"Ela tem nome sim, ela é minha amiga... o nome dela é Lorena."
TOTAL MINDFUCK, foi o comentário do Atillah quando relatei o acontecido por MSN. TOTAL. Arrisco meu anonimato para dar aos leitores imaginários a dimensão do absurdo:
MEU NOME, QUERIDOS LEITORES, É LORENA.
Still mindfucked, testemunhei a transferência da Lorena para outra sala. Perguntei ao homem como ele se chamava: Manoel Novelino Gomes da Silveira. Fiz o gesto de abraçá-lo mas ele recuou, chocado. Estendi a mão, agradeci tão comovida que não lembro de ter me apresentado, talvez com medo dele achar que eu estava zombando do nome da cachorrinha. Seu Manoel apertou a minha mão com lágrimas nos olhos e saiu.
O veterinário pediu meus dados para o registro da Lorena e ficou bege quando dei a ele meu cartão de visitas. "Lorena?!"
É. Lorena.
Ele não me cobrou nada pelo tratamento da Lorena, que ainda está internada com todo o luxo, comendo carne moída com arroz e sendo visitada pelo seu Manoel toda manhã. Ando ocupada tentando encontrar quem fique com ela, mas é muito difícil arrumar um lar para uma cachorrinha de rua já adulta e, depois do acidente, um tanto estropiada -- e mais ocupada ainda tentando arrumar um lar para meus preconceitos, minha antiga noção de mundo e do significado do meu próprio nome.
Deixei de procurar o céu refletido nas pupilas de um cão. Estou aprendendo a olhar para cima, e a buscar meu próprio reflexo nas pupilas dos que me cercam -- monstros ao volante, rostos indiferentes, veterinários compassivos...
...mas nunca houve espelho mais límpido do que o das pupilas avermelhadas de Manoel Novelino Gomes da Silveira.
Ele é meu amigo.
--Lorena.